terça-feira, janeiro 27, 2009

O choro da gente

Ah, moço, a gente faz assim: tira tudo o que está em cima da cama e coloca com cuidado no chão. Mas a gente não tira a colcha grossa, que a cobre durante o dia e protege o lençol do pó do ar. Depois a gente vai e abre o armário, pega o travesseiro como quem vai dormir, mas a cama sabe o que a gente quer. A gente chora nela deitado, recolhido como feto em um útero, como um sem-teto. E só o bicho homem faz isso. A gente chora. Chora e chora. Mais e mais. Como um edifício que atravessa um século abandonado. As lágrimas se dão com a poeira que a gente carrega dentro no corpo. E a gente sofre porque dói, mas dói demais e parece que faz bem. No quarto, a gente sozinho chora em cima da cama com as memórias de glórias desperdiçadas. Há também outras memórias mais, aquelas que portam outras não-vitórias, mais conclusões. Há coisa que a gente nem sabe, mas sente. E sente que dói. E às vezes é um amor. Ah, mas quem é a gente para saber sobre sentimentos que só anjos podem ter, seu moço? A gente é assim... Não é nada. A cama, velha e sábia, reta e firme, feita de madeira maciça, de tudo sabe e recebe por fim um corpo fatigado de tanto choro e contrações, um corpo que é o nosso e se esparrama todo membros sobre a superfície, como quem cansa bem de tudo aquilo. Como quem termina, enfim. Como quem vira mãe. E se conclui, seu moço, que o choro foi o parto de um sono invejável, almejado, desejado, inevitável... E que é o filho de uma alma que alcançou um pouco de paz.

Um comentário:

Felipe Silva disse...

Muito bom vitor!

Acho que vc está chegando na maturidade literária... aquela em que Camões escreveu Os Lusíadas ou James Joice quando escreveu Ulisses.

Ao terminar de ler A Natureza da Mordida

Foi a mesma sensação de parar com o marcador página na mão após acabar um livro. Eu não sabia onde colocar meu sentimento após aquele final....