quarta-feira, fevereiro 27, 2002

Praga


Outra praia, outro descobrir. Um índio, que até então nem sabia que era índio, estendeu a mão e ofereceu a Cristóvão Colombo um tomate.
-Um pomo d'ouro! - exclamou o almirante, confundindo o fruto que brilhava ao sol novo da América com uma maçã selvagem. Depois examinou o fruto mais de perto e perguntou:
-Para que serve?
-Saladas - respondeu o índio. -Refogados. Molhos.
-Para o espaguete! - exclamou Colombo, compreendendo por que o destino o trouxera até ali. Lembrando que seu nono, em Gênova, vivia elogiando Marco Polo por ter trazido o espaguete do Oriente e sua nona dizendo que sim, o espaguete era bom, mas faltava alguma coisa. Sua missão estava revelada: numa só viagem, superara o Marco polo do nono e descobrira o que faltava na macarronada da nona. Ficou com o tomate.
-O que você me dá em troca? - quis saber o índio.
Não se sabe que língua falavam. A linguagem mágica dos grandes encontros. Não interessa.
-Dou em troca um dos produtos supremos da nossa civilização. Uma preciosidade. Um dos frutos da indústria que breve chegará aqui e transformará este mato em outra Europa.
E Colombo deu uma miçanga ao índio.
Colombo perguntou que outra novidade o índio tinha para lhe dar. Eo índio ofereceu uma batata.
-O que faremos com isso? - perguntou Colombo, olhando a feia batata com pouco entusiasmo.
O índio descreveu o futuro da batata,desde a sua importância na alimentação dos camponeses europeus em fomes ainda por vir até a noisette e as fritas. E Colombo botou a batata na algibeira e deu em troca uma moedinha de valor tão baixo que em vez da cara mostrava o joelho do rei. O que mais o índio tinha para lhe dar?
O fruto do cacaueiro, de onde sairia o chocolate. O índio descreveu o significado do chocolate para a história do mundo, especialmente da Suíça e da Bahia, e como seriam os bombons, e as barras recheadas com avelãs, e suspeita-se que tenha mencionado até a musse. E Colombo trocou o cacau por um espelhinho. Que mais?
Fumo! Em breve, todos estariam experimentando as delícias do tabaco e o novo hábito dominaria o mundo. E, para quem quisesse um barato ainda maior, o índio incuía a planta da coca junto com a planta do fumo em troca das contas que Colombo lhe oferecia. Que mais?
Milho, Aipim. Um papagaio.
-E isso que você tem na nariz? - perguntou Colombo, apontando para a argola de ouro.
-O que você dá em troca?
Colombo ofereceu mais miçangas, que o índio não quis. Outra moedinha. Comprimidos. Vale-transporte. Finalmente apontou sua pistola para a cabeça do índio e disse "Isto". E disparou. Depois deu ordens a seus homens para recolher todo o ouro à vista, mesmo que tivessem que trazer os narizes juntos.
Do chão, antes de morrer, o índio amaldiçoou Colombo e praguejou. Que a batata tornasse a sua raça obesa, que o chocolate enchesse as suas artérias de colesterol, que o fumo lhe desse câncer, que a cocaína o enlouquecesse e que o ouro destruísse a sua alma. E que o tomate - pediu o índio aos céus, com seu último suspiro - se transformasse em katchup e molho enlatado sem graça que estragasse o espaguete para todo o sempre. E assim aconteceu.

(Luis Fernando Veríssimo)



Vitor ouvindo O Trem

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Ao terminar de ler A Natureza da Mordida

Foi a mesma sensação de parar com o marcador página na mão após acabar um livro. Eu não sabia onde colocar meu sentimento após aquele final....